26 de fev. de 2009

Ô abre alas que eu quero passar...

A gente brincou sem máscara nesse carnaval.
A gente não ouvia samba quando se conheceu e é bem verdade que eu esqueci seu nome.
Aí você me embolou nos seus braços e eu não lembro se foi antes ou depois que me dei conta do quanto seus olhos eram calmos.
Eram cinco da manhã? Talvez mais?
Não sei mais, só sei que o tempo se adiantou e chegamos na primavera sem sequer passar pelo outono.
Bosques de flores brotavam no caminho que fizemos na volta, eu e você, que não decidimos nada, só seguimos.
Talvez aquela fosse uma tentativa de prolongar a noite, que já era dia. Uma tentativa de nunca ser amanhã, de ser pra sempre hoje. Acho que pensamos que pudesse ser só mais um amor de carnaval, efêmero. Mas não, era primavera já.
Você entendeu, eu também.

Agora você brinda-me com seus números, com essa serenidade tão feroz.
Você é um oásis no meio do seu próprio deserto.
E quando você me abriu as portas desse oásis eu bebi da sua água, da sua água fresca, ouvi suas histórias, vi suas marcas, chorei e sorri a sua história e então embolei você nos meus braços porque já eram quase sete horas.
Aí eu decorei seu sorriso e o toque que meus dedos experimentaram na sua pele.
Aí eu apertei o seu braço e tomei seu sorriso, mas te deixei o meu.
Agora tem um pouco de você em mim.

Eu sei que depois dessa primavera vem um verão.
Sempre tem verão depois da primavera.
Mas enquanto houver flores nesse caminho e auroras em seus olhos, meu querido, então não há de se temer o calor nem as tempestades.

11 de fev. de 2009

Ela e Ele (reedicão!)



Ela

Bato a porta do táxi com força e aperto o botão da portaria. Ouço passos na calçada e tenho medo, mas logo vem o clique do portão abrindo e entro depressa. Digo boa noite ao porteiro quase mecanicamente. Já é tarde e só penso em estar com ele.

Quando o elevador fecha a porta vejo que já é meia-noite.


Ele

O ponteiro dos segundos vai passando e ouço os barulhos soando numa contagem regressiva. É silêncio profundo. É escuro também, e profundo, não vejo absolutamente nada.

Escuto o estalo que escapa dos ponteiros do relógio quando eles se juntam, à meia-noite.

Pontualmente surge o barulho do elevador.

Ela está subindo.


Ela

Penso nele novamente e o elevador pára. A porta se abre e sinto o coração bater forte. Ando em direção à porta ansiosa.


Ele

O elevador pára e as portas se abrem. Passo a passo ela vem chegando e pelo barulho agudo que seus pés causam percebo que ela usa suas sandálias de salto alto pretas que deixam seus pés magníficos. Seus passos são descompassados como se tivessem pressa.


Ela

Abro minha bolsa e procuro minhas chaves: porque será que nunca sei onde elas estão? Quase levo a mão à campainha, mas acabo achando a chave bem lá no fundo. Imagino que ele já saiba que estou à porta.


Ele

Ela pára um instante e meu peito se enche. Ruídos dela mexendo na bolsa: por que será que ela nunca sabe onde está sua chave? Por um momento já espero a campainha tocar, mas ela vai abrindo a porta devagar e silenciosamente, imaginando que já durmo.


Ela

Lá dentro há um silêncio profundo, como sempre.

Jogo minha bolsa pelo chão, estou realmente cansada hoje. Vou a geladeira, faço bastante barulho pra ele perceber que cheguei. Mexo em qualquer coisa, bebo água.

Depois de um breve silêncio, abro meu zíper devagar e sei que agora ele deve estar sorrindo porque adora esse momento.


Ele

Ouço sua bolsa cair pelo chão da sala seguido de um longo suspiro de cansaço. Abre a geladeira, mexe em algo, pega um copo e bebe alguma coisa em grandes goles.

Barulho de zíper abrindo.

Sorrio.


Ela

Vou andando cambaleante para o banheiro pensando numa ducha bem quente. Entro, tiro a roupa, mas não fecho a porta pensando em ser surpreendida. Deixo a água cair, me esfrego, tudo num ritmo bem constante pra que ele me perceba. Mas ele não aparece, então acabo logo e fecho o chuveiro. Ao mesmo tempo ouço ele virar-se na cama.


Ele

Seus passos agora são descompassados de cansaço e ela vai se arrastando pelo corredor até o banheiro, mas não fecha a porta. Vai tomar um banho rápido, eu sei. Chuveiro, água caindo, pele sendo massageada. Tudo é quase musical. Eu fecho os olhos já sabendo onde tudo isso vai dar. Mas ela ainda nem me procurou e por isso sou eu quem suspira agora. Eu me viro na cama e ela range. Ao mesmo tempo ela fecha o chuveiro, em uníssono.


Ela

Enxugo-me, pego a escova e fico penteando os cabelos por alguns segundos. Depois passo um hidratante no rosto e como não faço barulho, me divirto percebendo que ele deve estar pensando o que faço nesse momento porque há um silêncio tenso.


Ele

Ela enxuga-se, penteia o cabelo. Provavelmente por alguns segundos está passando algum creme no rosto, porque ela sempre faz isso e porque há um silêncio tenso.


Ela

Enrolo-me na toalha, apago a luz e vou andando para o quarto.

Sinto meu peito ofegar.

Ao entrar o vejo de olhos fechados, mas sei que está acordado. Jogo a toalha no chão e espero por dois segundos que ele abra os olhos. Mas ele não o faz.

Vou ao guarda-roupa, abro, pego um pijama vermelho de seda, visto e sento na cama, ao seu lado. Ele continua imóvel, mas no seu silêncio já ouço sua respiração ofegante. Pego o controle da TV e fico trocando de canal, acho que esse é o maior sinal de que estou pronta.

Desisto.

Desligo a TV.


Ele

O interruptor elétrico clica, a luz apaga, ela vem vindo para o quarto.

Congelo.

Entra, joga a toalha no chão, abre o guarda-roupa e veste algo.

Eu continuo de olhos fechados.

Senta na cama, dá mais uma penteada no cabelo. Pega o controle, passa os canais e desiste em seguida.

Desliga a TV.

Ela está pronta.


Ela

Então me deito devagar. Pego meu travesseiro, bato, viro, amasso pra que fique do jeito que eu gosto e pra que ele entenda que não estou tão cansada assim.

Finjo perder o equilíbrio e esbarro nele, que quase fala algo. Mas desiste, nosso jogo é assim, não há como mudar.


Ele

Então se deita. Ajeita o travesseiro, bate, vira, amassa, talvez já ensaiando pra mais tarde. Insinua-se pra cima de mim fingindo perder o equilíbrio.


Ela

Apago a luminária, chego pra bem perto dele, sinto seu cheiro e faço um carinho em seus cabelos. Ele se entrega. Colo a boca no seu ouvido e falo um monte de coisas sem nexo, de amor, de desejo, e ele sorri. Não abre os olhos, mas arrepia.

A cama range de novo e agora num ritmo constante.


Ele

Ela apaga a luminária. Com a mão ensaia um carinho tímido no meu cabelo. Respira fundo e sussurra meia dúzia de palavras sem sentido no meu ouvido, que arrepia primeiro, pra depois todo o corpo.

A cama range de novo e agora num ritmo constante.


Ela

É assim quase sempre.

Toda vez que chego conforto-me no silêncio dele enquanto eu, barulho a barulho, vou me entregando.


Ele

É assim todo dia, ou quase todos.

Reconheço todos os seus sons e devolvo o meu silêncio, por que assim posso senti-la por completo. A cada dia decoro essa cena pra que tudo seja perfeito sempre, e é.


Ela

Porque o amo com meus ruídos e no seu silêncio.


Ele

Porque a amo no meu silêncio e com seus ruídos.




2 de fev. de 2009

Monólogo para um ator decadente

Fala 1/ Personagem 1


- Foi impressão minha ou você fez que sim com a cabeça entre a quarta e a quinta taça de vinho? Tá certo, o vinho é vagabundo, vai ver você já está ficando bêbado, sabe como é, dá uma tremedeira mesmo. Mais alguns 20 anos e talvez comece a entender um pouquinho de você.
Nossa! Você tá tão quieto hoje, fica aí com esse olhar vazio. Tá entediado? Pois é, eu falo demais mesmo.
Também, esse macarrão ta horrível né? Uma massaroca esquisita! Ai, será que você tá entalado? Quer que eu bata aí na suas costas?
Na verdade eu não entendi muito bem aquele seu “obrigado” da nossa última conversa. Você chegou a usar o presente? Funcionou? É que eu já tinha comprado antes de você decidir ir embora, aí sabe como é, resolvi deixar lá na sua mesa. Sabe o que é estranho? Aquelas últimas músicas que você me deu sumiram todas. E antes que você me pergunte eu não apaguei não, pelo menos não por querer. Você sabe que eu vivo brigando com o computador. Tentei até baixar algumas delas de novo, mas cara, não acho em lugar nenhum. Não agüento mais esse macarrão, chega.
Será que a gente pede mais um vinho? To ficando meio bêbado já. Tô achando que eu peguei meio pesado naquele último email que tem mandei, né? Você tá com uma cara péssima, tá chateado, né? Mas tenta entender, porra, fiquei muito chateado com a sua atitude, coisa feia mesmo.
Ah! Te contei aquela piada da loira usando o computador? Ih! Que foi? Não tá afim né? Já entendi, foi mal.
Era pra você sim o último texto do blog, a propósito. Você reconheceu, né? Sabe que ando em pânico com essa coisa do blog? Outro dia uma garota do trabalho disse que leu umas paradas, tenso isso né? Fiquei lendo e relendo tudo pra ver se tinha erro de português. Bad trip total...
Você tá mais forte né? Tá pegando pesado na academia? Te falei que voltei a malhar né? Quase trinta já, tá na hora de tomar vergonha na cara. Te falei, né? Porra, você não vai falar nada mesmo?
Não sei pra quê veio então...


Fim do primeiro ato.
(E, de fato, fim de tudo – o personagem 2 retira-se, mais mudo que nunca. É o fim da peça também.)