29 de dez. de 2007

Falta muito ainda.

O que ele imaginou encontrar quando chegou em casa?
Um cartão de Natal? Um recado na geladeira? Uma mensagem na secretária eletrônica?
Ele imaginou muitas coisas.
Só não imaginou não encontrar nada.

Já devia saber, tanto tempo de espera.
Mas foi traído pelo espírito natalino, pela proximidade do fim do ano, do início do outro.

No reencontro, a saudação não foi além de um frio abraço.
Mera formalidade.
Aquele gosto amargo na boca, velho conhecido gosto amargo.

Depois vieram as explicações à beira da cama. Ele desarmado, o outro duro.
O toque amigo na perna causou desconforto.
O outro não deseja mais ser tocado, ficou claro.
Ele insiste, abraça forte no final das amenidades.
O outro, atordoado, faz um carinho na cabeça dele.
Mas o carinho era só o atrito das mãos nos cabelos. Só.

No café da manhã, os amigos à mesa.
Quando o outro pronuncia o nome dele, diz em russo.
Ele não reconhece, ele não está convencido, ele acha até graça. Mas retira-se.
E quando retira-se, ouve o outro falando de novos (?) desejos sexuais e cavanhaques.

Então ele enfim entende: falta muito ainda.

8 de dez. de 2007



Na minha gramática, amor e concessão são sinônimos
na minha gramática 'se' não começa frase
na minha gramática, separação é certeza

na minha gramática, dor é só de barrriga
na minha gramática, ponto é só de ônibus
na minha gramática só existe a primeira pessoa do plural

na minha gramática, paz é sinônimo de música
diversão sinônimo de inteligência
amigo sinônimo de certeza
aliás, não existe a palavra inimigo
não na minha gramática.

O problema é que minha língua é ingrata,
e na minha gramática,
há um capítulo inteiro só de exceções.

6 de dez. de 2007

Fechado


A venda fechou.
Não tem mais bala, não tem mais suco de laranja, não tem bolo de banana.
As portas foram descendo e quando perceberam... A venda fechou!
E não é reforma, não senhor.
Fechou mesmo.

E só quem chora é a criancinha, doida pelos doces.
Porque os donos, estes querem partir pra outros negócios.
Um deles vai acabar buscando outro sócio, ou outros sócios, já percebeu que prefere assim.
O outro talvez não, vai sozinho mesmo, diversificar os negócios, expandir os contatos.

Não há como não sentir um pouco de vazio ao ver a porta fechada, a venda parecia tão alegre em alguns momentos. Colorida, divertida, até música a venda tinha.
Mas se você chegar perto, talvez se você puder grudar os ouvidos na parede e então conseguir ouvir lá dentro, aí vai entender que apesar do silêncio, está tudo em paz.

30 de nov. de 2007

Do you like to Boogie-Woogie? Do you like my Acid-Rock?

(Alucinações Musicais, Oliver Sacks)
"Ouvir música não é apenas algo auditivo e emocional, é também motor. Ouvimos música com nossos músculos, Nietzsche escreveu. Acompanhamos o ritmo da música, involuntariamente, mesmo se não estivermos prestando atenção a ela conscientemente, e nosso rosto e postura espelham a 'narrativa' da melodia e os pensamentos e sentimentos que ela provoca".

Que delícia isso bem na sexta-feira! Prenúncio de final de semana bom...

8 de nov. de 2007

Aprendi com a minha mãe


Aprendi com a minha mãe.
Uma vez, enquanto eu ouvia Björk, ela pediu:
- Toni, abaixa isso um pouco, essa música me deixa confusa, não me faz bem.

Achei a justificativa dela tão simples e tão precisa que atendi logo. Atendi e entendi. Simples assim: não gosto porque não me faz bem.

Usei muito disso durante a graduação, quando resolvi fazer minha monografia sobre o funk carioca. “Você gosta disso”? Me perguntavam, geralmente apavorados, aqueles acadêmicos esquisitos. Gosto, muito. Gosto porque me faz bem, porque me agita, porque me balança, porque me diverte. Simples assim. E olha que nesse caso eu poderia ser bem mais complexo, falar das origens da música, de tudo o que há por trás, mas não. Eles que se entendam, aqueles acadêmicos.

Adoro as saídas simples que as pessoas têm para as coisas e situações que elas não querem ou não gostam de fazer ou passar.
Uma amiga do trabalho, intimada a atender um grupo de investidores japoneses, recusou-se terminantemente: “Gente, eu não tenho sapato pra lidar com esse tipo de gente”, justificou-se. Virou bordão.

É assim que me parece justo.

22 de out. de 2007

Meninas minhas

(Livremente inspirado na poesia de Chico Buarque "As minhas meninas", para a peça as quatro meninas)


Foram as duas
Duas meninas minhas
Foram embora
E se foram meninas mesmo
Agora mulheres,
minhas

A que nasceu comigo nem olhou pra trás
Desapegada como ela só!
Cresceu tanto
Que na volta parecia outra
(Mas só nos dois primeiros segundos, ela disse)

A outra que veio depois
Quase não foi.
Aliás, ia, não ia, foi.
Tão doído que faltou até um adeus
(ela nem sabe que eu até tentei)

Duas meninas,
Opostas demais
Duas meninas minhas
Iguais só de lindeza
Tão longe as meninas...

Foram embora
Duas mulheres
Levaram uma parte grande
De mim
De uma história
Lindas.

Sinto o tempo parado
À espera destas meninas
Minhas

Mas elas não voltam, não mais
Que jeito?

(Vou atrás das minhas meninas)

18 de out. de 2007

Adélia Prado


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

28 de ago. de 2007

Geralda e as Mandiocas

Geralda era uma criança, cinco ou seis anos, acho.
Pobre, pobre de verdade, daquelas pobrezas doídas. Dona de uma magreza de dar dó, as pernas como gravetos, os olhos demasiadamente grandes.
Ela morava na roça. E era roça mesmo, não era fazenda ou sítio. Era chão de terra, casa de pau-a-pique, janelas de tramelas, rádio a pilha. Tudo revestido de um tom marrom horrível, sujo.
Mas Geralda trazia, junto àquela figura esquelética, uma linda cabelereira negra e nos olhos, ainda que esbugalhados, muita vida.
A cama onde ela dormia, com mais três irmãos - eles eram nove no total, mais o pai e a mãe - era feita com estacas fincadas no chão duro e retalhos de panos amarrados por entre as estacas, até que sustentasse o peso das crianças.
O pai vivia de pequenos trabalhos braçais: capinava, arava, colhia, ordenhava. Os irmãos mais velhos ajudavam. As meninas ficavam responsáveis pelo trabalho de casa, junto À mãe. Mulher naquela época não se afastava do tanque ou do fogão. Este, aliás, a lenha.
Não chegavam a passar fome, mas a comida nunca era farta. Geralda e seus irmãos eram magros.

Então Geralda e sua mãe, uma vez por semana, acordavam as quatro da manhã, caminhavam durante uma hora ainda sob a escuridão (ela me contou que quando a lua estava cheia, tudo ficava mais fácil...). Silenciosamente elas invadiam a roça vizinha.
Uma vez por semana elas iam, juntas, em silêncio, cúmplices, e pulavam a cerca de arame farpado.
Uma vez por semana Geralda e sua mãe roubavam mandiocas do vizinho.
E não pensavam em mais nada a não ser na água fervendo, na mandioca cozida, nas crianças felizes.
Talvez Geralda só percebesse que aquilo era errado quando, por descuido, ela pisava num galho seco que estalava e a mãe pedia silêncio.

De volta à casa, depois de nova caminhada de mais uma hora, Geralda nem se importava com o peso da comida nos ombros.
Os irmãos ali, esperando na soleira da porta, conferiam os sacos e tratavam de descascar as mandiocas.
Antes de prepará-las, os irmãos se abraçavam, agradeciam uns aos outros por aquilo, depois comiam.
Uma vez por semana aquela família dormia de barriga cheia. Felizes que só.

5 de jul. de 2007

Era uma casa muito engraçada...

(foto - http://www.olhares.com/ Autor: Raul Coelho)
Nunca gostei de nada provisório.
Pra mim ou é definitivo ou não é.

E não é que eu seja um daqueles românticos que acreditam que tudo é eterno. Nada contra os românticos, mas também não sou assim.
Se acabar, ok. Então é tratar logo de ir atrás de outro definitivo, simples.

Preciso me explicar: o provisório me traz uma péssima sensação de adiamento. Se o trabalho é provisório, só até encontrar algo melhor, então pra que se envolver demais? Se o cara não é O cara, nada de apresentar a família (sexo casual é uma outra coisa, ok?). Se o apartamento é alugado, não enfeito.

E então vamos adiando a vida a espera da tal situação definitiva e nada de viver.
Sou a favor de entrar de cabeça, de se envolver, de tomar partido, de comprar briga. Em tudo, aliás.

Outro dia visitei a casa da família de um amigo. Coisa simples, família grande, casa com quintal daqueles que a gente não vê mais.
Meu amigo me contou, emocionado, quantas gerações haviam passado por aquelas paredes já fracas.
Ao entrar no banheiro, percebi que a fiação estava toda aparente, com emendos de fita, escoradas em pregos.
Então fiquei imaginando que a primeira geração a morar naquela casa provavelmente imaginou que aquilo era provisório, e deixou pra lá. Se era só uma situação passageira, para que gastar tempo e dinheiro escondendo os fios?

Mas o tempo foi passando e, para aquela família, a casa não foi provisória.

Hoje, provavelmente com a última geração dentro, a casa permanente é provisória de novo. E os novos moradores pensam: "para que consertar essa casa velha? Estamos aqui enquanto não podemos comprar coisa melhor."

E sem notar, a família nem percebe que o provisório nunca se torna definitivo.

Janete Clair

O olhor vê o que quer ver.
É isso. Hoje não quero mais pedir licença. Estou cansado de pedir desculpas até quando não faço.
Um amigo me chama de Janete Clair, diz que em tudo vejo uma história, uma sucessão de fatos fantásticos, vilões, mocinhos. Sou assim mesmo, pronto.

Gosto disso, das ilusões boas, dos encontros fantáticos, dos homens perfeitos, do filme imaginado, quadro a quadro, cena a cena, trilha musical, happy end. A fantasia é boa pra quem vive onde vivo, "a terra desencantada da falta desmedida de tudo" agoniza e faz doer, mas resisto.

Meu olho vê o que eu quero ver.
O cérebro maquina, contrói o cenário, chegam dois personagens, ambos reais (embora o segundo, coadjuvante, ainda tenha algumas características irreais). Dois homens, o coração dilacerado, um telefonema rápido, quase um tango. Final de tarde, o céu avermelhado, cheiro de fumaça no ar.
A cena corre, os personagens evoluem. O primeiro homem traz um ar confiante, o segundo acena. Agora é balé. Um terceiro personagem desdobra-se: atende o primeiro, retribui o aceno ao segundo, sorri, avermelha-se, como o céu.

Sem licenças, sem deslumbres apesar do filme ou de todo esse aparente delírio.
O bacana é saber voltar à tona quando é preciso. O bacana é saber separar aqueles dois homens, quando são reais.

19 de jun. de 2007

1 de jun. de 2007

"Tempo, tempo mano velho, falta um tanto ainda eu sei
Pra você correr macio
Como zune um novo sedã
(...)
Tempo amigo, seja legal
Conto contigo pela madrugada
Só me derrube no final." (Pato Fu)


Essa semana fui metralhado pelo tempo. Ou pelas convenções e especulações que fazemos a seu respeito:
1. esqueci o guarda-chuva, lembrei no portão de casa, ao sair. Mas me pareceu ter passado tanto tempo entre esquecer e lembrar que deu preguiça de volta e pegar.
Choveu muito naquele dia.
2. seis meses se passaram depois que ela se foi. A dor ainda é tão forte que conto nos dedos os dias, como se fosse semana passada. Dez dedos, cinco em cada mão.
3. Santo Agostinho se pronunciou: "Se não me perguntam o que é tempo, eu sei. Mas, se pergutam o que é o tempo, eu não sei." A aluno detestou, quer terminar o curso com dignidade, seu tempo, curto.
4. um anti-idade aliviou três grandes rugas. Ganhei alguns anos.

Acho que é assim mesmo.



Obviamente!

(Foto: Antonio Duarte, site http://olhares.aeiou.pt/foto170982.html)


E quem é que consegue não escrever sobre coisas óbvias?

Quem é que consegue ligar o computador ou abrir o diário, tanto faz, e começar com uma idéia nova, absolutamente original, moderna, cheia de personalidade e sem nenhuma referência? Ninguém.

Por que as coisas todas já estão escritas. Algumas nas linhas, outras tantas nas entrelinhas.
Amor, dor, saudade, o filho perdido, a mão abusada, o aperto no peito, a falta de dinheiro, a pobreza, tão falada pobreza.

Muitos escritores numa época em que pouco há de ser dito, porque muito ainda não se sabe, não a ponto de virar poesia, conto, crônica, ensaio. E o que ainda não se sabe acaba ficando pra depois porque não se pode perder tempo achando, supondo, arriscando. O mundo é veloz, amigo, muito mais do que supunha aquela velha vã filosofia.

Pra recado, torpedo; pra pagamento débito automático; pro banco, Internet; para o restaurante, entrega a domicilio em 45 minutos ou o seu dinheiro de volta; para o macarrão, miojo; para a lasanha, congelada da sadia; para a foto, digital; para mostrar aos amigos, email; para marcar encontro, email; para pedir desculpas, email.
Os escritores, estes hoje em dia têm blogs.
Os músicos lançam novas versões de músicas pela Internet.

Tudo óbvio, rápido. Tudo acaba antes de começar, e se consegue começar, começa querendo acabar. Tudo pode ser dito com no máximo cinco palavras, “vai procurar isso no google” é a maior frase que conheço.

E porque então eu, mero desbravador metropolitano, deveria ter a pretensão de querer ter um escrito, um único que fosse, absolutamente original? Absolutamente indispensável? Absurdamente veloz?

Nada mais óbvio que escrever sobre óbvio.
Nada mais devagar e ultrapassado que escrever sobre escrever.
Eu mesmo, pra revisar este texto, mantenho apenas duas linhas:
“E quem é que consegue não escrever sobre coisas óbvias?
Nada mais óbvio que escrever sobre o óbvio.”


E pronto.

28 de mar. de 2007

ElaXEle

Ela e o Silêncio

Bato a porta do táxi com força e aperto o botão da portaria. Ouço passos na calçada e tenho medo, mas logo vem o clique do portão abrindo e entro depressa. Digo boa noite ao porteiro quase mecanicamente. Já é tarde e só penso em estar com ele.

Quando o elevador fecha a porta vejo que já é meia-noite.

Penso nele novamente e o elevador pára. A porta se abre e sinto o coração bater forte. Ando em direção à porta ansiosa, quanto mais chego perto dela mais rápido ando.

Abro minha bolsa e procuro minhas chaves: porque será que nunca sei onde elas estão? Quase levo a mão à campainha mas acabo achando a chave bem lá no fundo. Imagino que ele já saiba que estou à porta.

Lá dentro há um silêncio profundo, como sempre.

Ele sempre está assim, e eu sou capaz de entender todos os seus silêncios.

Jogo minha bolsa pelo chão, estou realmente cansada hoje. Vou a geladeira, faço bastante barulho pra ele perceber que cheguei. Mexo em qualquer coisa, bebo água.

Depois de um breve silêncio abro meu zíper devagar e sei que agora ele deve estar sorrindo, ele adora esse momento.

Vou andando cambaleante para o banheiro pensando numa ducha bem quente. Entro, tiro a roupa, mas não fecho a porta pensando em ser surpreendida. Deixo a água cair, me esfrego, tudo num ritmo bem constante pra que ele me perceba. Mas ele não aparece, então acabo logo e fecho o chuveiro. Ao mesmo tempo ouço ele virar-se na cama, em uníssono.

Enxugo-me, pego a escova e fico penteando os cabelos por alguns segundos. Depois passo um hidratante no rosto e como não faço barulho, me divirto percebendo que ele deve estar pensando o que faço nesse momento porque há um silêncio tenso.

Enrolo-me na toalha, apago a luz e vou andando para o quarto.

Sinto meu peito ofegar.

Ao entrar o vejo de olhos fechados, mas sei que está acordado. Jogo a toalha no chão e espero por dois segundos que ele abra os olhos. Mas ele não o faz.

Vou ao guarda-roupa, abro, pego um pijama vermelho de seda, visto e sento na cama, ao seu lado. Ele continua imóvel, mas no seu silêncio já ouço sua respiração ofegante. Pego o controle da TV e fico trocando de canal, acho que esse é o maior sinal de que estou pronta. Desisto. Desligo a TV.

Então me deito devagar. Pego meu travesseiro, bato, viro, amasso pra que fique do jeito que eu gosto e pra que ele entenda que não estou tão cansada assim.

Finjo perder o equilíbrio e esbarro nele, que quase fala algo. Mas desiste, nosso jogo é assim, não há como mudar.

Apago o abajur, chego pra bem perto dele, sinto seu cheiro e faço um carinho em seus cabelos. Ele se entrega. Colo a boca no seu ouvido e falo um monte de coisas sem nexo, de amor, de desejo, e ele sorri, mas não abre os olhos, mas arrepia.

A cama range de novo e agora num ritmo constante.

É assim quase sempre.

Toda vez que chego conforto-me no silêncio dele enquanto eu, barulho a barulho, vou me entregando.

Porque o amo com meus ruídos e no seu silêncio.

Ele e os Barulhos

O ponteiro dos segundos vai passando e ouço os barulhos soando numa contagem regressiva. É silêncio profundo. É escuro também, e profundo, não vejo absolutamente nada.

Escuto o estalo que escapa dos ponteiros do relógio quando eles se juntam, à meia-noite.

Pontualmente surge o barulho do elevador.

Ela está subindo.

Continuo no escuro, mas pelos ruídos dela sou capaz de entender tudo, até sua intenções mais secretas.

Meu coração agora bate tão forte que posso ouví-lo.

O elevador pára e as portas se abrem. Passo a passo ela vem chegando e pelo barulho agudo que seus pés causam percebo que ela usa suas sandálias de salto alto pretas que deixam seus pés magníficos. Seus passos são descompassados como se tivessem pressa e sinto sua excitação pela pressão que imprime ao chão, que aumenta disfarçadamente quando chega à porta.

Ela pára um instante e meu peito se enche. Ruídos dela mexendo na bolsa: por que será que nunca sabe onde está sua chave? Por um momento já espero a campainha tocar, mas ela vai abrindo a porta devagar e silenciosamente, imaginando que já durmo.

Ouço sua bolsa cair pelo chão da sala seguido de um longo suspiro de cansaço. Abre a geladeira, mexe em algo, pega um copo e bebe alguma coisa em grandes goles.

Barulho de zíper abrindo.

Sorrio.

Seus passos agora são descompassados de cansaço e ela vai se arrastando pelo corredor até o banheiro, mas não fecha a porta. Vai tomar um banho rápido, eu sei. Chuveiro, água caindo, pele sendo massageada. Tudo é quase musical. Eu fecho os olhos já sabendo onde tudo isso vai dar. Mas ela ainda nem me procurou e por isso sou eu quem suspira agora. Eu me viro na cama e ela range. Ao mesmo tempo ela fecha o chuveiro, em uníssono.

Enxuga-se, penteia o cabelo. Provavelmente por alguns segundos está passando algum creme no rosto, porque ela sempre faz isso e porque há um silêncio tenso.

O interruptor elétrico clica, a luz apaga, ela vem vindo para o quarto.

Congelo.

Entra, joga a toalha no chão, abre o guarda-roupa e veste algo. Eu continuo de olhos fechados. Senta na cama, dá mais uma penteada no cabelo. Pega o controle, passa os canais e desisti em seguida. Desliga a TV

Então se deita. Ajeita o travesseiro, bate, vira, amassa, talvez já ensaiando pra mais tarde. Insinua-se pra cima de mim fingindo perder o equilíbrio.

Apaga o abajur. Com a mão ela ensaia um carinho tímido no meu cabelo. Respira fundo e sussurra meia dúzia de palavras sem sentido no meu ouvido, que arrepia primeiro, pra depois todo o corpo.

A cama range de novo e agora num ritmo constante.

É assim todo dia, ou quase todos. Reconheço todos os seus sons e devolvo o meu silêncio, por que assim, não sei porquê, posso senti-la por completo. E a cada dia decoro essa cena pra que tudo seja perfeito sempre, e é.

Porque a amo no meu silêncio e nos seus ruídos.

Uma emergente em apuros!

Fazia um lindo dia quando Chapeuzinho Vermelho Torres de Barros despertou. Pássaros cantavam em sua janela enquanto seus olhos abriam e ao bocejar pôde sentir o cheiro de café fresco. Levantou, olhou-se no espelho e pensou que já era hora de retocar a tinta ruiva de seus cabelos; em seguida pintou seus olhos de azul – ela nunca saía do quarto sem antes estar devidamente maquiada. Ligou o rádio e vibrou mexendo os quadris ao som de Rick Martin cantando Maria.

- Hoje vai ser um dia e tanto! Disse pra si mesma e sorriu.

Mas quando se sentou à mesa com sua mãe, Maria Augusta Torres de Barros, viu que nem tudo eram flores: ela teria que ir à casa de sua avó para lhe entregar uma cesta de trufas irlandesas trazidas de sua última viagem àquele país. Relutou a principio, mas logo cedeu quando lembrou que vovó Marieta Janaína de Barros morava no mesmo condomínio que Jorge Frederico Augusto, seu mais novo alvo. E resolveu caprichar no rímel aquele dia...

Depois dos cabelos presos num coque banana foi direto à garagem pegar sua Mercedes conversível vermelha. Ao passar pelo espelho do hall de saída percebeu como estava elegante com sua nova echarpe Dolce e Gabana. Vermelha, era óbvio, sua cor favorita.

Antes de arrancar deu, aos seguranças, as coordenadas de onde ia, como de praxe:

- Estou indo à casa de vovó levar-lhe umas trufas, voltarei em algumas horas – anunciou.

Ela nem percebeu, mas um homem num carro parado à sua frente a observava e pôde ouvi-la dizendo aonde ia. Sem saber do perigo que corria ligou o rádio e cantou os pneus.

A casa de vovó ficava num bairro distante, e o caminho era rodeado de árvores de eucalipto, o que fazia com que Chapeuzinho Vermelho Torres de Barros se sentisse uma verdadeira atriz americana com todo aquele “ventinho cheiroso” nos cabelos, era como ela mesma dizia.

Um Opala preto, ano 65 (em péssimo estado de conservação, diga-se de passagem) a seguia com certa distância. E no volante o mesmo cara que a observava minutos atrás. O que ela não sabia é que há dias esse homem a seguia, esperando o momento exato de abordá-la. Ele era um bandido perigoso, alcunha Lobo Mau, e tendo saído da prisão há pouco, estava prestes a realizar mais um seqüestro relâmpago. O alvo? Ninguém melhor que Chapeuzinho, filha de uma das emergentes mais conhecidas da Barra da Tijuca.

Então Lobo Mau pensou mais rápido e resolveu cortar caminho por dentro de uma favela (ele conhecia bem aquele local!) para que pudesse chegar antes à casa de vovó Marieta. Sabia que ela já era uma senhora em idade avançada que não tinha seguranças e não seria difícil dominá-la para poder realizar toda a operação de dentro da casa, o que lhe pareceu mais seguro.

Naquele mesmo momento Chapeuzinho teve uma brilhante idéia: ligar pra uma amiga que morava no prédio e marcar um encontro casual com Jorge Frederico Augusto.

- Andressa amiga, preciso de um favor seu! Tipo assim, tô indo pra casa da vovó e pensei numa parada assim, tipo encontro casual com o Jorginho, será que ele vai sacar???

- Lógico que não amiga! Tipo assim, me dá alguns minutos que eu ajeito a parada pra você...

- Ai, brigada amiga.... Você é tudo!!!

E assim estava feito. Nada melhor que ter amigos, pensou. E aumentou o rádio.

Lobo Mau passou desapercebido pela portaria disfarçado de entregador de tapete persa. Subiu ao 308 e tocou a campainha. Quando vovó Marieta abriu a porta não pôde nem ver a cara do sujeito. Com toda prática que tinha, ele enrolou a velha no tapete enquanto ela gritava desesperada:

- Tire-me já de dentro dessa imitação vagabunda de tapete persa, eu não quero comprar essa porcaria seu vendedor de meia tigela!

- Quietinha aí velha dos infernos, fica na tua que a parada aqui é séria. Eu não tô vendendo nada, meu negócio é com sua netinha Chapeuzinho – dizia ele entre dentes, com medo de alguém ouvir.

Mas não convenceu Dona Marieta, que continuava a gritar que não compraria o tapete. Devia ser a cabeça que já não funcionava bem do alto de seus 95 anos...O meliante então amordaçou a senhora para que ela parasse de gritar. Escondeu-a dentro do closet da suíte principal do apartamento e reparou que somente a sala devia ser maior que seu barraco todo. Então vestiu o hobby de seda da velha, colocou um turbante (toda senhora mãe de emergente tem um, que usa pra esconder as falhas capilares causadas pelo excesso de laquê), encheu a cara de pó-de-arroz e deitou-se na cama para esperar o momento exato de executar seu plano.

Eis que a rubra menina chega ao prédio. Quando entra no apartamento da avó sente um estranho cheiro de perfume barato e ensaia como dizer a Dona Marieta que ela deve trocar de fragrância. Mas logo esquece quando chega ao quarto e dá de cara com uma figura quase horripilante deitada na cama.

- Vovó?!?

- Sim minha netinha querida!!!

- O que houve com a senhora? Parece uma múmia com tanto pó-de-arroz? Já não ensinei a senhora que existem umas bases ótimas da L’ancome que são super discretas?

- Hein!?! – Fala Lobo Mau com a voz grossa

- Ai, coof, coof, coof, que tosse, coof, coof – disfarça.

- E já não lhe disse que existem uns cristais de gengibre que são ótimos pra essa rouquidão??? - diz Chapeuzinho.

- Não se preocupe querida, estou bem.

- Vim trazer pra senhora essas trufas que trouxe da Irlanda, são divinas!

- Deixe-as aí, em qualquer canto

Ao aproximar-se mais da cama a menina percebe como a suposta vovó tem os olhos saltando das órbitas.

- Vovó, a senhora deve fazer um exame de tireóide, está com os olhos esbugalhados e enormes!!!

- São só pra te ver melhor minha filha!

- E essa boca enorme vovó, a senhora pôs silicone de novo?!?

- Não minha filha, é só o batom que deve estar borrado – diz Lobo Mau tentando parecer natural mas já incomodado com tantas perguntas...

- Vovó, que mãos enormes!!! Deve estar com problemas de circulação, estão muito inchadas!!!

- Não estão não menina, elas são grandes assim para segurarem todos os seus cartões de banco de uma só vez – diz Lobo Mau tirando o hobby e levantando da cama num sobressalto. De dentro do turbante ele saca um 38 que, habilidosamente, fica apontado direto para a cabeça de Chapeuzinho.

- Calma aí moço, eu te dou tudo, mas não me faça mal... Onde está minha vó? O que fez com ela???

- Sua vó fica de refém até que eu pegue todo dinheiro que você tem no banco.

- Toma moço – e abre a carteira tentando esconder seu American Express novinho totalmente sem limite.

- As senhas eu passo pro senhor.

- Não mesmo, você vai comigo – e agarra menina.

- Antes porém vamos passar um demaquilante pra tirar esse excesso de pó porque não combina nada nada com seu tom de pele – diz ela, quase amigável.

- Você ta louca?!? – diz ele – mas concorda quando vê sua figura patética no espelho...

Ao passar pela sala porém o coração de Chapeuzinho dispara. Lá está Jorginho, com uma espingarda enorme na mão, de calças curtas, parecendo um autêntico caçador.

- Largue a moça seu bandido de quinta!

- Ela está com um 38 na cabeça , irmão, vai encarar?

- Vou sim, só não encararia se não soubesse que essa arma é de brinquedo seu patife!

Chapeuzinho nesse momento sente uma mistura de medo com excitação, tudo isso é praticamente igual aos seus sonhos mais secretos: o mocinho salvando a donzela indefesa das mãos do elemento periculoso...

- Largue agora antes que eu atire em você – diz Jorginho se precipitando.

- Calma aí irmão, calma aí - e vai baixando a arma.

Então Chapeuzinho corre para os braços do herói e antes de tudo pergunta o porquê dele estar vestido assim e com uma arma daquelas.

- Estou chegando da aula de caça, e também faço aulas de tiro ao alvo, por isso conheço bem um 38 e percebi na hora que se tratava de um brinquedo de criança...

- Não me mate, por favor – dizia Lobo Mau

- Onde está Dona Marieta, diga agora!

- Está no guarda-roupa, dentro do tapete!!!

Chapeuzinho corre no quarto e desenrola sua vó e a salva. A velha senhora, agora mais calma confessa a neta:

- Sabe que olhando bem até que esse tapete até parece verdadeiro? Quanto custa hein moço?!? - Insiste ela.

- Fica quieta vovó, fica quieta... – diz a menina.

E Chapeuzinho se entrega aos braços do amado e eles são felizes para sempre.*

FIM

* Na verdade o para sempre é só até a nova lista dos “solteiros mais cobiçados do país” sair na coluna diária de Hildegard Angel, por que, afinal, de que adianta ter um amor e não sair ao menos uma vez por mês nas colunas sociais?!?

João Da Silva, o Lobo Mau, foi preso e condenado a 6 anos de prisão, mas fugiu há duas semanas, na última rebelião de presos do presídio Ari Franco. Chapeuzinho agora passa a maior parte do tempo em Miami, onde pode usar suas jóias sem medo.


Os intelectuais vão à praia

O mundo poderia até estar na mesma.
Os aviões demoram a decolar. Trânsito até no céu.
Minha escrita, pontual.
Meu astral, volúvel.
A criação quando muita, histérica, quando pouca mais histérica ainda.
Calor no Rio de Janeiro.
Vontade de praia.

Mas lá longe, no oceano das águas mornas, os intelectuais vão à praia.
A capa da arrogância, aquela velha amiga, ficou em casa, ou está apoiada na cadeira.
E aí eles descrevem sentimentos, se descrevem, vão, vem, retraem, expandem, imitam o movimento do mar.

O mundo poderia até estar na mesma. Mas quando os intelectuais vão a praia, tem arco-íris no céu. Por que suas idéias chocam-se com o vento e evaporam com a água.
E depois que o sol se põe, na praia dos intelectuais, chove. Todo dia.

20 de mar. de 2007

Intelectuais

Estou cercado de intelectuais - pelo menos assim auto intitulam-se.

Eles sempre estão cheios de sins e nãos a respeito de qualquer coisa que ouçam.
Criticam a TV, os EUA, o BBB, o capitalismo! São tiranos e vaidosos, mas se dizem fortes, abertos a trocas, humildes.

Mas eu sei que quando chega a noite e eles estão em casa, vêem a novela da oito, torcem pela eliminação do Caubói, julgam a Susana Vieira, lêem livros de piadas tolas, sentem-se ameaçados por coisas que não conhecem (de fato), invejam a roupa da Fátima Bernardes, vivem.

No dia seguinte, a capa da arrogância volta a cobrir seus corpos, a desfigurar seus rostos. No dia seguinte, os intelectuais voltam a ocupar os primeiros lugares, voltam a apontar seus dedos na direção dos que julgam mais fracos.
E continuam sem perceber o quanto são tolos.

15 de mar. de 2007

Ana e Carlos - fragmento do conto "História (talvez) de amor".

Ana era de Touro e Carlos de Áries.
Ela lia o horóscopo aos domingos, mas lia todos os signos, para escolher o melhor para ela naquele dia. Ele nem lia. E imagino que você, agora, tenta lembrar se essa combinação astrológica é boa. Então já te adianto:
“Uma relação delicada, onde o Touro ensina o Áries a louvar seus dons e talentos e a usar de maneira mais concreta e objetiva sua grande energia criadora. Pode ser que a busca de estabilidade do Touro seja traduzida como lentidão para o Áries. Em compensação, a sensualidade de ambos pode ser um ponto alto da relação. Áries ensina o Touro a se aventurar mais, ao mesmo tempo em que sofistica os gostos do parceiro.”

No futuro, que atingiremos tão logo você consiga deixar de lado essa tristeza de descobrir a existência de um amor anti-romântico, você descobrirá que Carlos não tem energia criadora nenhuma e que Ana, instável, tem espírito totalmente aventureiro enquanto Carlos, de sofisticado, só tem uma camisa Gucci, dada por Ana. E o pior, vai descobrir também que quem escreveu o texto sobre a conjunção astrológica foi Carlos, desempregado.

De volta ao primeiro encontro e depois das batatas fritas, o sol já acabava lá fora. O telefone dele não tocou, o dela mais duas vezes. Talvez ele tenha olhado para ela de uma forma diferente quando a segunda ligação terminou e ele pode ouvir ela dizendo “quem sabe” antes de desligar. E você, já sei, suspirou. Mas Carlos não, ainda não.

- Eu tinha que jantar com meus pais mas, sinceramente, vontade zero...
- E eu então! Ver carro novo do irmão no final de um domingo é um programão!
- O pior é que sempre rola aquele papo de “você tá namorando, meu filho”? Sabe que meu pai já até desconfiou que eu era gay? Tudo porque achou uma calcinha no meu sofá! Desistiu da idéia quando viu a Flávia Alessandra nua na gaveta do banheiro...
- Minha mãe também! Vive dizendo que minhas amigas todas casaram, menos eu. Depois tenta consertar dizendo que tem uma filha moderna, que prefere a estabilidade profissional a se encostar num homem qualquer.
- E você é mesmo assim?
- E você é mesmo gay?

(...)

13 de mar. de 2007

Vestido branco


Eu pretendia ir àquela festa vestida para matar.
Não sabia ao certo porque. Talvez fosse por causa daquele fulaninho que havia me dado um fora há alguns dias, ou talvez por saber que daria de cara com minha atual arquiinimiga. Ou ainda pelos dois motivos.
Acordei cedo, e comecei por uma massagem relaxante. Depois salão: unhas, cabelo,depilação, tudo.
Agora era escolher um vestido fabuloso. Horas de shopping e ele estava lá, na vitrine e tenho certeza que vi meu nome escrito na etiqueta (provavelmente ele estava por cima do preço, que só reparei quando cheguei em casa!). Ele era branco, à altura dos joelhos, com uma rosa presa na alça esquerda. Valorizava o busto e as pernas, e eu nem precisei pensar muito.
Agora só faltavam as sandálias e a bolsa, porque tudo precisava ser novo, já que eu continuava cheia de idéias velhas.E foi mais fácil. Também brancas elas eram altíssimas e amarradas nas pernas. A bolsa era pequena, com detalhes em prata – Gucci, sem maiores detalhes. Não me atrevo a comentar o preço porque eu mesma fiz questão de ainda não fazer a conta.
Fui para casa, usei máscaras geladas para os olhos, descansei por algumas horas e as sete em ponto estava pronta.
Estonteante.
Uma maquiagem sóbria, os cabelos presos num rabo displicente e os lábios bem coloridos de rosa. Rímel, sombra, mais rímel e estava impecável.
Então uma chuva torrencial começou a cair.
Tive vontade de chorar, minha produção era toda alva, e isso não combinava com aquela água que estava carregando junto toda minha empolgação.
Alguns telefonemas depois soube que a festa seria num lugar fechado e pude sentir meus olhos brilhando de novo.
Decidi ir de táxi porque queria tomar alguns drinques. Entraria no carro, desceria na porta do local, entraria e pronto. Passaria no máximo trinta segundos exposta aquele dilúvio. Nada poderia acontecer.
Desci e acenei para o primeiro amarelo que vi e ele parou. Carregava uma imensa sombrinha que, sinceramente, dava um certo glamour a meu novo vestido.
Mas fui traída pela altura dos saltos. Antes de entrar no carro, algum buraco (que tenho certeza que estava ali de propósito!) me fez perder o equilíbrio e pronto. Não foram necessários trinta segundos, mas apenas três para que eu me esborrachasse no chão. E de branco meu vestido ficou marrom, minhas sandálias correram junto com a correnteza e minha maquiagem escorreu junto com qualquer possibilidade de sucesso.
Voltei arrasada pra casa.
Não sei porque, mas depois um estranho ânimo tomou conta de mim apesar da lama que ainda estava nas minhas pernas
Vesti um jeans qualquer, um scarpin preto, uma camiseta moderna. Refiz a maquiagem, abusei ainda mais do rímel, escolhi uma bolsa e fui.
Quando cheguei na festa senti-me feliz. As pessoas me perguntavam o porquê de eu estar tão radiante, eu mesma ainda não sabia. O tal fulaninho não tirava os olhos de mim, e ensaiou duas vezes uma cantada tão barata que tratei logo de cortar.
E quando achei que nada poderia ser melhor, eis que dou de cara com minha arquiinimiga, que usava, pasmem, o mesmo vestido que há algumas horas atrás me fizera sentir única. É fato que o vestido não lhe caíra nada mal (porque verdade seja dita, ela era belíssima...), mas ela estava apagada, sem graça, sem nada.
E de dentro do meu jeans eu me senti soberana naquela noite.
Agradeci à chuva.

9 de fev. de 2007

Perfeição


Ele simplesmente não suportava ser tão lindo. Desde criança sofria com aqueles elogios freqüentes. Era o verde dos olhos, o mel dos cabelos, os cachos, o corpo sempre bem torneado, as mãos delicadas, a boca delineada, tudo um monte de coisa perfeita imperfeitamente encaixadas numa pessoa que só queria passar despercebida.
A mãe bem que tentou fazer do filho um prodígio. Sessões de fotos intermináveis, beliscões na bochecha rosada, mas dele brotou um estranho interesse por livros.
Ele até se achava bem bonitinho, mas queria não o ser. Pelo menos em grande parte do tempo.
Aos doze anos queria ser lixeiro, garoto esquisito, dizia a avó. Foi se escondendo atrás da imensa cabeleira que deixou cair-lhe pelos ombros numa sublime intenção de descaso, mas era só alguém achar-lhe os olhos e novamente tudo começava.
Quis gostar de rock, quis gostar de choro, quis ser da Lapa, da boemia. Mas então era alguém achar-lhe os lábios, depois o corpo, depois as mãos cerradas numa viola. E da arte que intencionava mostrar via-se só a moldura, nada mais.
Aos dezoito não pôde mais fugir e virou capa de revista. Aos dezenove conheceu Milão, Tóquio.
Mas de dentro dele alguma coisa feia queria brotar, alguma coisa que soasse tão estranho quanto o desejo de mostrar algo que não lhe fosse naturalmente tão perfeito. Mas quanto mais deixava se levar pelo acaso mais era etéreo .
Desejou então fazer o contrário. Desejou dedicar-se tão intensamente àquilo a ponto de tornar intencional tanta beleza. Mas não foi assim. Dos novos cuidados agora reluziam a pele, o trato, o visual. E aos vinte já tinha figurado em dez das dez revistas mais famosas do mundo. Para piorar, era agora milionário.
Viu o mundo se afundando numa feiúra tão linda que sentiu inveja.
Viu guerra, viu morte, violência, medo.
Viu pobreza, tristeza, e mais uma imensidão de desejos seus.
A única dor que sentia era a de estar condenado à perfeição.
O tempo passou e ele viu-se humano ao completar vinte e nove. O espelho mostrou uma ruga em seu rosto!
E quando os jornais o condenaram ao fracasso, ele obteve seu maior sucesso.
Doou seu dinheiro, mudou-se para uma fazenda, cultiva cenouras, é feliz.